Gn 11,1-9 – rodapé da Bíblia Ave Maria
Com o relato da torre de Babel fica completo o circulo da análise critica que os sábios de Israel tiveram para compreender o passado e a ação do mal nele: o ser humano é a origem de todos os males na história quando impõe seu egoísmo e seu próprio interesse sobre os outros (Gn 3,1-24); os ambiciosos associam-se a outros, formando grupos de poder para excluir, dominar e oprimir (Gn 4,17-27); o mesmo povo de Israel atraiçoou sua vocação fundamental para a vida e para a sua defesa(Gn 6-9); as demais nações, especialmente as que cresceram e se tornaram grandes, fizeram-no às custas dos mais fracos (Gn 10,1-32). Agora se questiona, por meio deste relato, o papel das estruturas política e religiosa na história. Uma interpretação tradicional e simplista nos ensinou que esta passagem explica a origem da diversidade dos povos, culturas e línguas como um castigo de Deus contra os que supostamente “falavam uma só língua”. Na realidade o texto é mais profundo do que parece e pode ser de grande atualidade se dele fizermos uma leitura à luz das circunstâncias sócio – históricas em que foi escrito. O texto hebraico não nos diz que “o mundo inteiro falava a mesma língua, com as mesmas palavras”. Diz literalmente que “toda terra era um único lábio” ou “toda a terra tinha uma só língua”, expressão que resulta, para nós, um tanto estranha e que os tradutores precisaram verter para as línguas atuais para torná-la compreensível aos leitores, mas deixando de se aperceber da grande denuncia que o texto original propõe e a luz que ele lança sobre a realidade que hoje vivem nossos povos e culturas. Em diferentes literaturas do antigo Oriente os arqueólogos encontraram texto que contêm essa mesma expressão e cujo sentido é a dominação única imposta por um só senhor, o imperador. Mencionemos só um testemunho arqueológico extrabíblico: o prisma de Teglat-Falasar (1116-1090 a.C.) que diz: “Desde o princípio de meu reinado, até meu quinto ano de governo, minha mão conquistou ao todo 42 territórios e seus príncipes; desde a outra margem do rio Zab inferior, linha de limites, mais além dos bosques das montanhas, até a outra margem do Eufrates, até a terra dos hititas e o Mar do Ocidente, eu os transformei em uma única boca, tomei reféns e lhes impus tributos”. Note-se que a expressão “uma única boca” não tem nada a ver com questões de tipo idiomático, mas sim ao aspecto político. Trata-se da imposição pela força de um mesmo sistema econômico, o tributário. Assim, pois, o texto que estudamos faz referência à realidade que ” o mundo inteiro vivia”, submetida a uma única boca, isto é, a um único amo e senhor, cuja a linguagem era a da conquista e da dominação. Todo povo derrotado era submetido à vontade do tirano: suas jovens, violadas e reduzidas a escravidão; seus jovens, assassinados ou escravizados; suas instituições, destruídas; seus líderes, desterrados ou mortos; suas terras, saqueadas; seus tesouros, roubados; a população sobrevivente era obrigada a pagar tributo anual ao conquistador. Sob esta perspectiva este texto não revela tanto um castigo de Deus, e sim sua oposição às práticas imperialistas. O último patamar das torres – das que os conquistadores construíam como sinal de poder – era destinado à divindade. Era algo parecido a uma câmara nupcial, completamente vazia, na qual a divindade descia para unir-se ao construtor da torre. Não era qualquer construção: era o símbolo do poder de um império. Anualmente por meio de uma liturgia especial, fazia-se com que o povo acreditasse que a divindade descia à cúspide para se unir á estrutura dominante, e assim abençoa-la. Os povos submetidos pensavam, portanto, que divindade estava do lado do opressor. Na realidade, tratava-se de uma crença ingênua e alienante, fruto de uma religião vendida ao sistema. Este relato denuncia e corrige essa crença. O Senhor desce do céu, não para unir-se ao poder que construiu a torre, mas sim para destrui-la e, de passagem, para libertar os povos da submissão e da escravidão. Não se trata, pois, de um castigo, mas de um ato libertador de Deus. Diante do profundo sentido que a historia encerra, o crente de hoje tem a ferramenta adequada para reler criticamente a religiosidade político – religiosa que vive. Faz alguns anos, o mundo vem caminhando para uma espécie de globalização. Mas trata-se de um projeto que verdadeiramente beneficia todos o povos por igual? Que papel nesse processo desempenham as estruturas econômica, política e religiosa, e a serviço de quem? Dos mais fracos? O projeto de globalização respeita a identidade cultural, econômica, religiosa e nacional de cada povo? O papel da religião é decisivo, tanto nos processos de conscientização quanto de alimentação do povo: deveríamos utilizar esta passagem para avaliar a globalização atual e não ter de lamentá-la mais tarde.
