A Descendência de Caim

Gn 4,17-24 -rodapé da Bíblia Ave Maria

A Cena de Caim e Abel decorre desta passagem, quase nunca levada em consideração na linguagem cristã. Na descendência de Caim existe algo verdadeiramente importante, e, portanto, deve-se observá-la. Não se trata de descendência no sentido estrito e sim de uma estirpe anímica e amoral. Caim já havia sido marcado com o estigma da maldição. Portanto, dele origina-se uma série de descendentes claramente ligados ao que chamamos grupos de poder, tão daninhos ao longo da história. Para o semita oriental, o nome da pessoa designa o seu ser, sua condição. Por isso, convém lançar um olhar sobre o sentido etimológico de cada nome, para descobrir o que esta passagem quer denunciar e anunciar: cada nome marca um grupo que, de um modo ou de outro, maneja o poder, e isso é contrário à vontade divina, por ir contra o respeito devido à vontade do irmão. Assim, Henoc está relacionado com uma cidade construída por Caim (v.17). A Bíblia não condena a cidade por ser cidade, mas a estrutura de injustiça que a cidade antiga representava, visto que era um réplica em miniatura do poder imperial. Por causa dela os empobrecidos de sempre sofriam a exclusão, a opressão e a exploração, sem misericórdia. Fica assim condenado o poder opressor quo a cidade representa simbolicamente. Com Henoc fica também condenado seu filho Irad, nome que significa “asno selvagem”. Talvez represente o poder opressor do que acumulam terrenos e propriedades, os latifundiários, atualmente, os monopolizadores dos recursos naturais. Maviael, que significa “Deus é destruído”, e Matusael, que se traduz por “homem ávido por bens”, representam o poder da cobiça e a tentativa de “destruir” o próprio Deus: o dinheiro, a autoridade, a sabedoria e o lucro pessoal são poderes que tantas vezes foram endeusados, transformados em divindades que entram diretamente em competição com o Deus da justiça. No coração do preguiçoso e prepotente nasce o desejo de acabar com um Deus que exige dele generosidade (cf. Dt 15,7s) e que devolva ao irmão o que a ele pertence por justiça. Também essa espécie de gente pertence à mesma maldita estirpe de Caim, porque em nenhum momento importa-se com a vida do irmão. Essas pessoas, consideradas individual ou coletivamente, que geram estruturas de dominação, levam em si maldição. Lamec é descrito como o homem da violência sem controle (v.19,23s) e está relacionado com aqueles que ao longo da história não tiveram nenhum escrúpulo em derramar sangue e encher a vida de pranto e de dor por causa da vingança desmedida e da tendência de fazer justiça por sua própria conta. Jabel é descrito como “o antepassado dos pastores nômades”(v.20). A posse desmedida de rebanhos transformou-se para alguns, em domínio e controle econômico sobre os outros. Jubal, por sua vez, aparece como chefe de todos os que tocam cítara e harpa (v.21). Na história, os poderosos fomentaram muitas vezes uma cultura imposta, para cantar suas façanhas. Não é que a Bíblia condene a cultura ou suas múltiplas formas de se manifestar; a condenação é para as estruturas injustas que tantas vezes se apropriam dos frutos da cultura e da ciência para coloca-los a serviço de seus projetos de opressão e de morte. Em Tubalcaim, “forjador de ferramentas de bronze e de ferro” (v.22), não se condenam o trabalho com os metais, mas sim os que converteram o descobrimento do bronze e do ferro em poder e de opressão. Israel e muitos outros povos recordavam a dor e o sofrimento causados pelos filisteus, os primeiros a usar os metais. A fabricação de ferramentas de trabalho certamente melhorou a qualidade de vida, mas forjou lanças, armaduras e carros de combate. Algo tão positivo e útil para a vida se transformou em um instrumento de violência e de morte, que ainda continua presente em nossa vida. Isso é o que a Bíblia condena e, consequentemente, considera também como filhos de Caim, o pai amaldiçoado, aqueles que promoveram a cultura de morte. Os nomes da mulheres citadas estão todos relacionados com a beleza: Ada significa “adorno” (v.19); Sela, “enfeite” (v.19) e Noema, “preciosa, formosa” (v.22). Representam a mulher submissa ao poder do homem, que não presta atenção ao valor do ser feminino, mas só aos atributos externos, como seu atrativo ou suas joias. Desde tempo muito antigo, a Bíblia condena esse abuso, como algo alheio ao plano original de Deus, ao criar o homem e a mulher à sua própria imagem e semelhança (v.1,26).

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