O Pecado

Gn 3,1-24 – rodapé da Bíblia Ave Maria

No sentido de tentar recuperar ao máximo a riqueza e o significado profundo que esta passagem encerra, convém “desaprender”, em que medida, oque a catequese e a pregação tradicionais nos ensinaram. Ensinavam-nos que o ser humano havia sido criado em estado de inocência, de graça e de perfeição absolutas e que, em razão de um primeiro pecado, esse estado original perdera-se. Consequências dessa interpretação: Deus tinha um projeto perfeito, o homem e a mulher destruíram-no com seu pecado; Deus não tinha feito as coisas tão bem quanto parecia; a mulher fica transformada em um simples instrumento de pecado, uma espécie de monstro tentador; o homem aparece como um estúpido, vítima inconsciente das artimanha tentadora da mulher. Convém ter em conta que este relato do Paraíso também está construído, ao menos até o versículo 14, tendo por básico um mito mesopotâmico. O redator emprega elementos da mitologia mesopotâmica para resolver questionamentos do tipo existencial e de fé, que os crentes de sua geração faziam. Na Bíblia, esses mitos sofrem uma mudança de referencial, uma adaptação necessária para transmitir a verdade que os sábios querem anunciar a seu povo. A passagem nos mostra a serpente e a mulher, unidas em torno de uma árvore misteriosa chamada “árvore da ciência do bem e do mal”. A tentadora aqui não é a mulher, como no mito no qual se baseia esta passagem, mas a serpente; e a sedução tão pouco provém da mulher, do fruto que “era bom pra comer, agradável aspecto e muito apropriado para abrir a inteligência”(v.6). A mulher fará o homem compartilhar do fruto da árvore que, como veremos depois, não tem nada haver com a sexualidade. A “árvore da ciência do bem e do mal” é o símbolo que ocupa o lugar central da narrativa. Em vários lugares do Antigo Testamento encontramos a expressão “ciência do bem e do mal” aplicada a tentativa de descrever a atitude de dar a última decisão em relação a uma determinada ação (cf. 2Sm 14, 17; 1Rs 3,9; Ecl 12, 14 e, no lado oposto, Jr 10,5). Isso nos leva a entender que a grande tentação do ser humano e sua perdição é tomar a si próprio como medida única de todas as coisa e colocar seu interesses como norma suprema, prescindindo de Deus. todas as vezes que o ser humano agiu assim, ao longo da história, os resultados foram, e continuam sendo, o sacrifício injustos de outros seres, o aparecimento do mal sob a de egolatria, prazer, despotismo…e essa sem é que foi a experiência constante de Israel como povo. A adaptação à mentalidade e às necessidades israelitas desse mito se atribuí a teologia javista (J), mesmo que a escola sacerdotal (P) o tenha relido e colocado aqui. O miro ilustra muito bem a proposta que os sábios de Israel vem fazendo: o mal no mundo, nas nações e na sociedade, não tem outra origem senão no próprio ser humano, quando se deixa enganar e dominar pela terrealidade – “adamacidade” – que carrega em si. Neste caso, Israel sabe por experiência o que é viver sob o domínio despótico de uma série de reis que, em nome de Deus, o afundaram na mais absoluta pobreza. A história da humanidade a história de nossos povos, não está cheia de casos semelhantes? Eis aqui a chave para entender a dinâmica oculta de toda tirania e todo totalitarismo , a qual temos de desmascarar, com nossa fé convicta e comprometida. Os vv. 14-24 são a contribuição própria da escola sacerdotal (P). Trata-se de um oráculo, tal e como empregavam os profetas. Recorde-se que, para a época da redação final do Pentateuco, a literatura profética já tinha realizado um grande percurso, o que quer dizer que a figura do oráculo eram muito familiar ao povo israelita. O oráculo tem, de maneira geral, quatro elementos: 1) Um juiz, que costuma ser Deus, como autoridade suprema. 2) Um réu, que é uma pessoa, uma instituição ou uma nação a ser julgada; neste relato o réu é tríplice: o homem, a mulher e a serpente. 3) O delito ou motivo pelo qual se estabelece o julgamento. 4) A sentença ou o castigo que se aplica ao infrator. De maneira geral. o oráculo profético não inventa nenhum castigo novo para o delinquente, mas aproveita as catástrofes ou os males que sobrevieram ou que estão acontecendo e os interpreta como censura de Deus. Assim, pois, os castigos que os três personagens do mito recebem devem ser interpretados do mesmo modo que os dois oráculos proféticos: transforma0-se em castigo ou se interpreta como tal algo que já foi dado e que causa dor o – arrastar-se, o parto doloroso, a aparência sexual, a dureza do trabalho e a morte são fenômenos próprios da natureza, mas que no marco desse oráculo recebem um novo referencial. O mito dos vv.1-13 procura devolver a Deus sua soberania moral absoluta. O ser humano se autodestrói quando perde a vista de Deus, essencialmente libertador, é a única referência válida para distinguir o correto do incorreto – ciência do bem e do mal na Bíblia – acima de interesses pessoais. Quando se coloca o próprio ser humano e suas tendências monopolizadoras no lugar de Deus, o resultado é que os interesses pessoais desse ser humano, quase sempre institucionalizados, transformam-se em norma absoluta para os outros, pervertendo assim até o vocabulário – chamar justo o que é injusto. Aí está o grande apelo desse mito que, ao dar resposta às causas do mal, denuncia o imenso mal que uma consciência pervertida produz na história, especialmente quando se trata de uma consciência que detém o poder.

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