Gn 4,1-16 – rodapé da Bíblia Ave Maria

Um poema sumério, do segundo milênio antes de Cristo, fala da rivalidade entre Dumizi, deus pastor, e Enkidu, deus lavrador, e, diferentemente do que acontece no relato bíblico, a deusa Inana prefere o lavrador. É provável que tanto o relato sumério quanto a adaptação que nos apresenta a Bíblia sejam um reflexo das dificuldades e lutas entre pastores-nômades-e agricultores-sedentários. Também o relato de Caim e Abel nos mostra um costume religioso: no início da colheita, os agricultores ofereciam às suas divindades seus melhores frutos. Era uma maneira de agradecer o que se recebia. O mesmo faziam os pastores com o melhor dos seus rebanhos-oferecendo especialmente os primogênitos. Mas não se tratava só de gratidão, mas sem de “comprometer” a divindade para que o ano seguinte fosse também muito produtivo. Quando assim não acontecia, interpretava-se que a divindade não havia aceitado as oferendas do ano precedente, as havia recusado e com elas também o oferente. Este pode ter sido o caso de Caim: uma má colheita pela escassez de chuva, por pragas ou por ladrões; resumindo, um insucesso agrário leva-o a deduzir que sua oferenda do ano anterior havia sido recusada por Deus, ao passo que a do irmão, não. Contudo, a intencionalidade do relato vai muito bem. Estes relatos, em linguagem mítico-simbólica, são um meio utilizado pelos sábios de Israel para fazer com que o povo entenda como o egoísmo humano disfarçado de muitas formas é, na verdade, o responsável pelos grandes males e fracassos da história do povo e também da humanidade. A narração de Caim e Abel não denuncia só um irmão fratricida que, levado pela inveja, incitada pelo insucesso, não respeita a vida do seu irmão. O relato nos transmite algo muito mais profundo e real: estabelece a origem paterna do egoísmo como coletividade; ou seja, mostra a qualidade amaldiçoada, a origem maldita dos grupos de poder que causaram tanto mal e continuam causando à humanidade. Entende-se que a Bíblia não é contrária às diferentes formas de organização do povo, dos grupos, do trabalho comunitário… O que a Bíblia recusa e amaldiçoa desde suas primeiras páginas é a tendência humana de formar coletividades que acabam antepondo seus interesses particulares acima dos interesses dos outros, sem se importarem que esses outros sejam seus irmãos. Os grupos de poder geram estruturas que, infelizmente, transforma-se em permanente tentação para o ser humano. Porque permanecer fora de um grupo de poder é algo desvantajoso, é pertencer aos oprimidos, aos perdedores, aos que são chamados a desaparecer pela mão dos potentados. O protótipo de quem se deixa levar por essa tendência que “está à tua porta, espreitando-te”(v.7)é, segundo a Bíblia, um ser necessariamente amaldiçoado que só produz estruturas malditas. Mas… como descobrir os grupos de poder? Como identificá-los? A chave não é outra senão a mesma que retrata Caim: são os assassinos de seus irmãos. Esses. de propósito ou involuntariamente, acabam sempre por eliminar os outros. Assim todo aquele que mata um semelhante, mesmo que não faça fisicamente, é um cainita. O centro do relato não está, portanto, na simples relação entre Caim e Abel. O que ocupa realmente a centralidade da narrativa é a descendência maldita de Caim, a origem das estruturas de poder que causaram tanto mal e continuarão causando até que nós crentes comprometidos ok sejamos capazes de reconhecê-las e acabar com elas.