O Paraíso

Gn 2, 4b-25 – rodapé da Bíblia Ave Maria

Este novo relato, também chamado “relato da criação”, possui algumas características que o tornam diferente do primeiro capítulo. Nele não há uma ordem tão rígida, nem uma sequência de obras criadas de acordo com os dias da semanal. Também aqui Deus não dá ordens para que apareçam as coisas; ele mesmo vai fazendo com sua mãos, vai modelando com argila cada ser vivente, e o faz com engenhosidade para conseguir que sua principal criatura, o homem, sinta-se bem: faz com que durma e de sua costela “forma uma criatura, que o homem reconhece como a única com capacidade de ser sua companheira entre todas as criaturas existentes: a mulher. Portanto, o estilo literário e a percepção ou imagem que se tem de Deus são completamente diferentes daquele do primeiro relato do Gênesis. Este é um relato muito antigo que os israelitas já conheciam vários séculos antes. O seu material original parece provir da cultura acadiana; os israelitas adaptaram-no a seu pensamento e o empregaram para explicar a origem do homem e da mulher; mais ainda, para procurar estabelecer as próprias raízes do mal no mundo. Efetivamente, desde suas origens, Israel sofreu e experimentou a violência. Várias vezes viu-se ameaçado e submetido por outros povos mais fortes que ele, mas também submeteu e exerceu violência contra outros. A critica situação do século VI a.C. obriga esse povo a repensar o sentido desse encadeamento de violências e, servindo-se deste relato já conhecido, pelos israelitas, os sábios vão começar a provar sua tese de que a origem e a fonte do mal não estão em Deus, mas sim no próprio coração humano. Segundo a narrativa de que nos ocupamos, o ser humano, homem e mulher, provém da mesma “adamah”- pó da terra – da mesma matéria da qual também foram feitos os animais(v.19). O ser humano e os animais se assemelham em seus comportamentos, porque desde a origem existe algo que os identifica: a “adamah”. Por isso, os que nascem são chamados de Adão, porque são formados com “adamah”, provêm dela. Assim, fica claro para os israelitas – que sofrem violência, opressão e brutalidade e inflingiam-nas a outros- os instintos e comportamentos selvagens têm uma mesma matéria original, tanto no ser humano como no animal: a terra, o pó. Na criação do ser humano e dos animais podem se destacar, três elementos que lhes são comuns: 1) O ser humano é formado com “argila do solo”, elemento do qual também são feito os animais (vv7.19.); 2) Deus dá ao ser humano “alento de vida”, mas também o recebem os animais(cf. Gn7,15.22; Sl 103,29s); 3) o ser humano é chamado “ser vivo”; os animais recebem idêntica denominação (Gn 1,21; 2,19;9,10). Isso significa que o ser humano é igual ao animal? A Bíblia responde negativamente e explica. Ao ser humano, Deus deu algo que os animais não possuem: a imagem e semelhança com ele (Gn 1,26), imagem que começa a se perfilar desde o momento em que Seus sopra seu próprio alento nas narinas do ser humano que acabou de formar (v.7). Assim, pois, não é ser humano pelo fato de ter um corpo; o específico do ser acontece quando o Espírito de Deus nele habita, o torna apto a ser alguém humanizado. Dito de outra maneira: o humano acontece no homem e na mulher quando sua materialidade – “adamacidade” – é ocupada pelo Espírito de Deus. Superada a literalidade com que nos ensinaram a ver esses textos, é possível extrair deles – também na atualidade – imensas riquezas para nossa fé e crescimento pessoal. Basta lançar um olhar às atuais relações sociais, à ordem internacional, para percebermos a tremenda atualidade que esse relato encerra. Também nossos fracassos, a violência e a injustiça que se mantem em nosso mundo tem a ver com essa tendência natural para destruir e eliminar quem atravesse em nosso caminho. O texto nos convida, hoje, a tomar consciência de nossa natural “adamacidade” , mas também a nos conscientizar de que dentro de cada um há a presença do Espírito que só espera a oportunidade que lhe demos para humanizar-nos, e assim poder sonhar com uma sociedade nova, graças a nosso esforço coletivo. Esta é, pois, uma primeira resposta que a Escritura dá ao questionamento existencial sobre o mal, sobre a violência e a injustiça, pão de cada dia do povo de Israel e nosso, na atualidade. Finalmente, o trabalho que os pensadores e sábios de Israel realizaram é toda uma autocrítica que está apenas começando. Mas o ponto de partida fica já estabelecido neste segundo relato do Gênesis: a origem do mal está no próprio ser humano, no deixar-se dominar pela “adamacidade” que leva dentro de si. O relato seguinte é a ilustração concreta dessa tese.

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