Gn 1, 1-2,4a rodapé da Bíblia Ave Maria
Durante muito tempo acreditou-se que este relato, com o qual se inicia o Gênesis, fosse o primeiro o e mais antigo escrito na Bíblia. É provável que os materiais e as tradições empregadas aqui sejam sim muito antigos, mas está provado que sua redação é provavelmente uma das últimas escritas no Pentateuco. O estilo em que está redigido é obra da escola sacerdotal (P) e seu escopo carece de todo interesse científico. Como já sabemos, o povo judeu encontrava-se, então, a um passo de aceitar a religião babilônica. O que exigia e do que precisava não era uma lição de pré-história, mas sim princípios que o ajudassem a entender os séculos de história vivida, para não afundar completamente na crítica situação que estava atravessando. Respirava-se um ar de derrota, de fracasso, de horizontes fechados, desconfiança em relação a todo tipo de instituição. E, o que era ainda mais perigoso: sob o ponto de vista religioso, existia um ambiente de desconfiança para com o seu Deus e até certas suspeitas de que ele, e somente ele, era o responsável, não só pelo males passados, mas também pelos do presente. A primeira intenção do sábios judeus era libertar Deus de toda a responsabilidade em relação à injustiça e ao mal no mundo. Com materiais de cosmogonias de outros povos orientais, compõem um relato que busca, pela poesia, incutir na mente dos crentes a ideia de que, desde o princípio, Deus havia criado tudo com grande harmonia e bondade e que, portanto, não havia na mente de Deus nenhum propósito negativo. O hino ou ou o poema responde a um esquema setenário de criação. Deus cria tudo quando existe em seis dias e ao sétimo consagra o descanso, o que também deve ser imitado polo povo. Vários elementos repetem-se ao longo do poema com a intenção de que fiquem bem impressos na mente do crente. Não se trata de uma teoria sobre a formação do mundo nem sobre o aparecimento da vida e das espécies. Na obra há razões muito mais profunda e sérias que a impulsionam. Sem dúvida alguma, o crente judeu vive uma encruzilhada histórica: o Senhor Javé, seu Deus, foi derrotado; o povo perdeu sua instituições e seus opressores forçam-no a aceitar a atraente religião babilônica, com seus cultos e seus ritos. Para esse fiéis tentados, o poema é tudo ele pura catequese, um canto à resistência que convida a manter firme a fé no único e verdadeiro Deus de Israel. Vejamos as possíveis intenções e consequências subjacentes o relato. 1) A criação é fruto da bondade absoluta de Deus. Aqui aparece uma onipotência criadora, cuja Palavra única aparecer tudo o que existe, com o cunho característico de que tudo é “bom”. Já nos mitos se cosmogonias dos povos vizinhos, a criação é dada por lutas e confrontos violentos entre as divindades. 2) Na criação tudo obedece a um plano harmônico, cada elemento cumpre uma função determinada: o astros iluminam o dia e a noite e determinam a passagem do tempo e a mudança das estações. Cada criatura existe para servir ao ser humano, não o contrário. Isso contrasta com a percepção de outras religiões, entre elas a babilônica, nas quais astros e animais eram adorados como divindades, diante dos quais muitos imolavam inclusive seus filhos. Jamais isso esteve presente na mente criadora de Deus; 3) Dá-se outro passo diante da tomada de consciência referente a relação de Deus com o ser humano e o mundo, ao se destacar a responsabilidade própria do homem e da mulher no conjunto harmônico criado por Deus mediante sua Palavra. Não é acidental o fato de o ser humano, homem e mulher, ter sido criado no último dia, na ordem temporal marcada nesse poema No ambiente de injustiça de desigualdade e de dominação por parte de quem se acredita amo e senhor do mundo, opõe-se esse novo elemento de resistência: Deus cria o homem e mulher à sua própria imagem e semelhança, para que administrem conjuntamente sua obra em igualdade de responsabilidades. Sua imagem e semelhança com Deus era projeto próprio do ser humano como casal: construir cada dia essa imagem e semelhança, mantendo a fidelidade ao projeto harmônico e bondoso do princípio, sem dominar os outros nem sujeitar à tirania os fracos ou o resto da criação. 4) Na criação existe uma ordem e uma harmonia, não só porque é fruto da Palavra criadora de Deus, mas porque ele mesmo ratificou essa harmonia e essa bondade com sua bênção, algo que é exclusivo dele e que aqui é também uma mensagem esperançosa para enfrentar a dura situação de submissão em que se encontravam os israelitas. 5) Finalmente, o descanso sabático é um novo convite à resistência contra o poder opressor, que hoje retoma grave vigor. Nem mesmo Deus em sua atividade criadora omitiu esse aspecto do descanso. O ser humano não pode se transformar em um agente de trabalho e de produção; o descanso também faz parte da harmonia e finalidade da criação e, portanto, está incluído na imagem e semelhança de seu Criador e que o ser humano leva em si. Existem, pois, muitos elementos que fazem deste relato um motivo para crer, para esperar e, sobretudo, para resistir contra tudo aquilo ou aqueles que pretendem suplantar a vontade criadora e libertadora de Deus neste mundo.